quinta-feira, 6 de novembro de 2008

Dez Minutos- parte II

Com a voz marcada pela tristeza e com um olhar vazio de felicidade Ângela diz que até teve sorte «se é que há sorte numa vida de merda», desabafa após alguns segundos de silêncio. Esteve «só» um ano completamente presa. Nesse ano teve um comportamento descrito como exemplar, o que lhe permitiu ter acesso ao mundo fora das grades «mesmo que só de dia e para trabalhar».
Ângela está detida em regime aberto, pode passar o dia fora do estabelecimento prisional mas quando as horas do tempo dão as oito da noite, Ângela tem que se apresentar novamente às paredes que lhe confinam a visão. Na sua «humilde casa», como chama à cela que ocupa, «uns centímetros maior que os buracos dos ratos», Ângela diz ter muito tempo para nada fazer. Entre as paredes que lhe abafam o choro das noites Ângela confessa sonhar. Sonha com a vida que perdeu, com a inocência de menina que não viveu por força de «decisões mal tomadas».
Quando as noites dão lugar ao dia Ângela sai do «buraco» para trabalhar num café. Patrícia e Carlos, os donos do café onde trabalha, são os únicos que sabem onde Ângela passa as noites. Aceitaram ajuda-la, «são como uns pais», diz Ângela enquanto dá o único sorriso franco e com ternura destes dias. No café faz de tudo, serve às mesas, limpa, cozinha, é «pau para toda a colher», brinca. Do dia-a-dia do café confessa que o que mais gosta é do contacto com as pessoas, fá-la sentir «mais humana e menos bicho». No entanto, e volta a tristeza na voz, diz ter consciências que se as pessoas, que são simpáticas com ela, soubessem a sua história perderiam toda a simpatia e ela passava a ser a «drogada do café». Ângela sente-se injustiçada com isso. No primeiro ano que esteve presa fez uma desintoxicação severa, não está curada mas vive «sem aquela porcaria». Tem pena que ninguém lhe reconheça o esforço.
Quando acabar de pagar a dívida que tem com a sociedade Ângela sonha em poder «continuar no café, com os paizinhos emprestados». Quer recomeçar a vida que perdeu naqueles dez minutos de conversa de café, quer poder viver de «cara limpa», sem dever nada a ninguém. Mas as grades que agora lhe confinam a visão, assombram-lhe os sonhos. Será sempre uma «ex-reclusa, drogada, uma criminosa» aos olhos da sociedade. Esse estigma, desabafa Ângela, será a «pior prisão».

terça-feira, 28 de outubro de 2008

Dez Minutos- Parte I

Tempo. O tempo que não passa, o tempo que não volta atrás, o tempo que ainda falta. Tempo. É o maior inimigo de Ângela (nome fictício), 25 anos, presa no Estabelecimento Prisional de Custoias. Dez minutos de tempo foram o suficiente para mudar o rumo da vida desta mulher. Dez minutos, e um vício, que nas palavras de Ângela, a deixava «cega, estúpida e violenta».

Os tempos difíceis da vida de Ângela começaram aos 16 anos, quando, por influência de um namorado mais velho, com 32 anos, experimentou pela primeira vez uma droga ‘dura’, cocaína. Sem vontade e sem à-vontade para contrariar o homem por quem «estava ceguinha de paixão», Ângela cheirou a primeira de muitas linhas de cocaína que iriam marcar o tempo dos seus dias. Ângela, ainda inocente, «pouco ou nada sabia sobre o que era aquela coisa», conta. Numa idade confusa, a, naquele tempo, menina tinha no namorado o seu «mais que tudo. O gajo era um deus» conta Ângela, desviando o olhar da parede para um tempo passado, longínquo.

Oriunda de uma família conservadora, o pai proibiu-lhe a paixão mas Ângela «fugia da escola para ir ter com o gajo». Um dia fugiu de casa. As palavras doces do «gajo», em poucos dias de tempo, tornaram-se «chapadas de punho cerrado». Com o olhar marcado pela tristeza, Ângela conta que os seus dias eram marcados pela «porrada, insultos da pior espécie, e pela droga», aliás, era pelo vício que o ‘gajo’ a controlava. Desempregada, sem estudos, não tinha rendimentos «dependia daquele estupor para tudo: comer, dormir, vestir e principalmente para dar os ‘chutos’» que o vício impunha.

Dois anos depois do tempo em que fugiu da vida de menina, Ângela fez o percurso inverso, fugiu para voltar para casa. Mas o tempo não volta atrás, o pai não lhe abriu a porta. Ficou na rua. Com a ressaca a doer-lhe no corpo, o desespero levou-a cometer pequenos furtos, para satisfazer a «fome. No início roubava para comer», para pagar o vício arrumava carros, limpava escadas em prédios «o que aparecesse», diz. Faz silêncio. Levanta-se e com um sorriso carregado de amargura confessa que «é tudo uma treta! Roubava porque o dinheiro não chegava para o raio da droga. Preferia ‘mandar uma’ a comer».

Os tempos difíceis levaram-na a voltar para o ‘gajo’, «não tinha para onde ir. Com ele levava porrada, mas tinha a ‘branquinha’», explica. No entanto, os tempos eram outros e nestes tempos o ‘gajo’ obrigava Ângela a trabalhar. Quando se apercebeu «estava já no tráfico», conta. É por causa do tráfico que está detida, mas não só. Um dia, com dinheiro no bolso para comprar as doses que iria consumir, mas também vender, Ângela foi apanhada numa operação policial. Toldada pela vontade de consumir mais uma dose, já era tempo da dose do dia, agrediu um dos agentes da PJ que participava na operação, não por não querer ser presa, mas porque «já não ia conseguir dar o ‘ chuto’», explica.

A sentença marcou-lhe o tempo longe da sociedade, 3 anos, dois por agressão a um agente policial e um pelo tráfico de droga. Um ano depois de ter dado entrada no Estabelecimento Prisional de Custoias Ângela vê no tempo o seu grande inimigo, «o tempo aqui não passa e faz pensar na merda toda que está para trás». Quando os dias não acabam e são todos iguais «perde-se a noção do tempo. Só se quer saber do dia em que se vai sair», explica.

Se o tempo voltasse atrás Ângela não voltava aos minutos do tempo em que deixou em coma o «desgraçado do policia» que lhe apareceu pela frente quando vício falava mais alto. Nas quatro paredes da cela em que habita, Ângela descobriu que os dez minutos que lhe «lixaram a vida», conta, foram os dez minutos em que se deixou ficar sentada na mesa do café a ouvir o ‘gajo’ e «estúpida e parva foi na conversa dele».

quinta-feira, 16 de outubro de 2008

A voz do silêncio

Silencio é o som da noite. Numa cadeia é sempre noite. A luz do dia é turva, cinzelada pelos contornos das grades. Vidas interrompidas pelo erro, pela culpa, pela inocência tirada pelas leis dos homens. Todas são mulheres, filhas de alguém, irmãs, mulher, mães. Em comum têm as grades que distanciam do mundo, a mesma paisagem parada do Tempo, o mesmo desejo: a liberdade.
A vida corre marcada pelos ponteiros do relógio, lento, pausado, que marca anos, meses, dias, horas. Horas de gritos em surdina, de minutos ruidosos de silêncio. Muito se fala numa cadeia, pouco se diz, as paredes não mudam.
Por trás das grades de cada prisão vive o silêncio para o mundo. A «Prisão em Si» dará voz às histórias de mulheres presas, afastadas da sociedade, presas em si. Uma janela para o mundo confinado por paredes, grades, leis e estigmas.